Escrito no período
Após encontrar com um grupo de fueguinos, no dia 25 de fevereiro de 1834, diversas questões vem a mente de Darwin.
Enquanto íamos para a praia, acostamos uma canoa com seis fueguinos. Jamais vi criaturas mais miseráveis; de crescimento abortado, com rostos hediondos manchados de tinta branca, e quase nus. Uma mulher madura [grávida] estava totalmente nua, com a chuva e a água das ondas pingando de seu corpo. Tinham as peles vermelhas imundas e gordurosas, os cabelos emaranhados, vozes dissonantes, gestos violentos e sem qualquer dignidade.
Vendo esses homens, mal podemos nos obrigar a crer que sejam criaturas nossas irmãs, colocadas em nosso mesmo mundo. Mal posso imaginar que exista espetáculo mais interessante e mais merecedor de reflexão do que o desses selvagens não domesticados. Trata-se de tema comum de conjecturas; que prazer pode haver na vida de alguns dos animais menos dotados? E com quanto mais razão pode-se perguntar isto a respeito desses homens. Veja-se a tenda: qualquer pequena depressão no solo é escolhida, sobre ela colocam-se uns poucos troncos de árvore apodrecidos e, na direção de onde vem o vento, alguns tufos de grama. Aqui há cinco ou seis seres humanos, nus e desprotegidos do vento, da chuva e da neve que, neste clima tempestuoso, dormem no chão molhado, enroscados como animais. De manhã eles se levantam para apanhar crustáceos na maré baixa e as mulheres, no inverno e no verão, mergulham para coletar ovas; esta comida miserável é complementada por framboesas insípidas e fungos. Estão cercados por tribos hostis que falam dialetos diferentes e o motivo de suas guerras parecem ser os meios de subsistência. Sua terra é uma massa irregular de rochedos agrestes, morros altivos e florestas inúteis, e mesmo isso é contemplado através de neblinas e infindas tempestades. Na busca pela comida eles se movem de um ponto a outro e a costa é tão íngreme que isso deve ser feito em canoas precárias. Eles não podem conhecer a sensação de se ter um lar (a terra habitável não o suportaria), e muito menos a do afeto doméstico, sem contar, na verdade, que o de um mestre por um escravo trabalhador abjeto possa ser chamado assim.
Como são pequenas as possibilidades de ação dos mais altos poderes da mente: o que resta aqui para a imaginação pintar, para a razão comparar para que o juízo decida? Arrancar uma lapa da pedra não requer nem astúcia, o mais baixo dos poderes da mente. Sua habilidade, como o instinto dos animais, não melhora com a experiência; a canoa, sua obra de mais engenho, pobre como possa ser, sabemos ter permanecido a mesma pelos últimos 300 anos. Embora sejam a mesma criatura, quão pouco deve se parecer a mente de um desses seres com a de um homem educado. Que escala de melhorias está compreendida entre as faculdades de um selvagem fueguino e as de sir Isaac Newton. De onde veio esta gente? Será que permaneceram no mesmo estado desde a criação do mundo? O que poderia ter tentado uma tribo de homens a abandonar as belas regiões do Norte para viajar descendo as Cordilleras pela espinha dorsal da América, para inventar e construir canoas e então entrar em uma das regiões mais inóspitas do mundo? Essas e muitas outras reflexões devem ocupar a mente de qualquer um que contempla um desses pobres selvagens. Ao mesmo tempo, no entanto, ele pode ter consciência de que algumas delas são errôneas. Não pode haver motivos para que se suponha que a raça dos fueguinos esteja diminuindo e podemos portanto ter certeza de que gozam de uma suficiente quota de felicidade (seja de qual tipo for) para fazer sua vida valer a pena. A natureza, tornando onipotente o hábito, adequou o fueguino ao clima e aos frutos de sua terra.
Em 3 de março de 1834, Charles Darwin escreveu sobre o fueguinos Onas:
Até próximo da laguna Ponsonby vimos muito poucos fueguinos; ontem nos encontramos com muitos; eram os homens de quem Jemmy Button tinha tanto medo no ano passado e que dizia serem inimigos desta tribo. O terreno intermédio, escassamente habitado, suponho, é neutro para os beligerantes. Rapidamente nos vimos com dez ou doze canoas a nossa volta; estabeleceu-se um rápido escambo, com peixes e siris sendo trocados por tecidos e trapos. Foi muito divertido ver a autêntica satisfação com que uma mulher jovem e bonita, com o rosto pintado de preto, atava com juncos vários pedaços de trapos cinzentos em torno da cabeça. Seu marido, que gozava do incomum privilégio, nesta região, de ter duas esposas, evidentemente ficou com ciúmes de toda a atenção concedida e sua jovem esposa e, depois de uma consulta a seus dois encantos nus, foi levado embora pelos remos delas. Assim que surgiu uma brisa, os fueguinos ficaram muito intrigados com nossos procedimentos; eles não tinha ideia de que nos púnhamos a favor do vento e que, em conseqüência disso, todas suas tentativas de seguir o navio eram basicamente vãs. Valeu muito a pena de ficarmos presos na calmaria termos tido uma oportunidade tão boa de vermos e rirmos dessas criaturas curiosas. Descubro haver uma grande diferença entre estar em um navio e em um bote. No ano passado cheguei ao ponto de detestar até mesmo o som de suas vozes, tamanho era o incômodo que nos traziam. Mas agora nós somos o grupo mais forte; quanto mais fueguinos melhor, e mais divertido. Ambos os grupos riam, admiravam-se e espantavam-se um com o outro; nós com pena deles que nos davam bons peixes em troca de trapos; eles aproveitando a chance de encontrar pessoas que trocavam artigos de tal valor por um bom jantar.
Em 5 e 6 de março de 1834, Charles Darwin descreveu o reencontro com Jemmy Button e sua final despedida, há um ano de volta a sua terra:
De manhã, depois de ancorarmos na laguna Ponsonby, seguimos para Wulaia, a terra de Jemmy Button. Sendo esta uma parte populosa da região, fomos seguidos por sete canoas. Quando chegamos ao ponto nosso conhecido, não podíamos ver quaisquer sinais de nossos amigos e ficamos ainda mais alarmados por vermos que os fueguinos faziam sinais hostis com seus arcos e flechas. Logo depois avistou-se uma canoa que vinha com uma bandeira hasteada. Até que estivesse bem perto de nossa amurada, não conseguimos reconhecer o pobre Jemmy. Foi bastante doloroso olhar para ele: magro, pálido e sem qualquer peça que restasse das roupas, a não ser por um pedaço de cobertor em torno da cintura. Com o cabelo caindo-lhe pelos ombros, de tanta vergonha de si próprio ele virou as costas para o navio quando a canoa se aproximou. Quando ele nos deixou estava muito gordo e era tão exigente com suas roupas que tinha sempre medo de sequer sujar seus sapatos; quase nunca estava sem luvas e sempre com o cabelo bem aparado. Jamais vi mudança tão completa e lamentável. Quando, no entanto, ele foi vestido e passou a primeira impressão, as coisas começaram a parecer melhores. Ele tinha bastante (ou, como ele mesmo disse, demais) de que comer. Não tinha frio; seus amigos eram boas pessoas e ele conseguia falar um pouco sua própria língua! E por fim descobrimos (quando ela chegou) que ele tinha uma mulher jovem e de boa aparência. Isso ele, de início, não queria reconhecer, e ficamos bastante surpresos ao descobrir que ele não tinha a menor vontade de retornar à Inglaterra. O pobre Jemmy, com seu bom coração de sempre, trouxe duas belas peles de lontra para dois de seus velhos amigos e algumas pontas de flecha e de lança, que ele mesmo fizera, para o capitão. Ele também havia construído uma canoa e está, hoje, nitidamente bem estabelecido. As diversas coisas que agora lhe demos ele certamente conseguirá conservar. O mais estranho é a dificuldade de Jemmy em recuperar sua própria língua. Ele parece ter ensinado um pouco de inglês a todos seus amigos. Quando veio sua esposa, um velho a anunciou "como esposa de Jemmy Button"!
York Minster retornou a sua terra há muitos meses e se despediu com um ato de acabada vilania: ele convenceu Jemmy e sua mãe a irem com ele para sua terra, então roubou tudo que tinham e os abandonou. Parece que ele tratou Fuegia muito mal.
Jemmy foi dormir em terra mas voltou de manhã para o desjejum. O capitão teve longas conversas com ele e obteve muitas informações curiosas: eles haviam abandonado as antigas tendas e atravessado a água a fim de ficar fora do alcance dos Ohens que vinham das montanhas para roubar. Eles são claramente os homens altos, os patagões pedestres da costa Leste. Jemmy ficou a bordo até que o navio erguesse âncora, o que assustou tanto sua esposa que ela não cessou de chorar até que ele estivesse a salvo fora do navio com todos seus valiosos presentes.
Cada viva alma a bordo lamentava tanto apertar pela última vez a mão de Jemmy como havia ficado contente por vê-lo. Espero duvidar muito pouco do fato de que ele será tão feliz quanto seria se jamais houvesse deixado sua terra, o que é muito mais do que eu antes pensava. Ele acendeu uma fogueira em sinal de adeus no que o navio saía da laguna Ponsonby em sua rota para a ilha Falkland Leste.